CASAL DO FOZ A TERCEIRA LENDA

Sem duvida, o Brasil é o País do futuro. Há apenas, de não se adiar esse futuro.

domingo, 28 de março de 2010

AMOR NA GUERRA

LIFUNE - TARI

Depois de se tomar conhecimento da devastadora acção de puro terrorismo, não só de grupos subversivos, como do então famigerado pelotão comandado pelo Alferes Robles, com a primeira resposta militar, dando consistência à máxima: "ao terrorismo só se pode responder com terrorismo", acabou por ser toda a zona vandalizada, começando na vasta Região dos Dembos, a norte de Luanda.
Ainda cá no "Puto", como a tropa por influências locais, se habituara a designar o Portugal da Metrópole, a 10 de Agosto de 1961, o mais forte bastião terrorista da altura, a povoação de Nambuangongo foi retomada pelo Batalhão 96 comandado pelo lendário Tenente-Coronel Armando Maçanita.
Uma verdadeira epopeia, relatada pelo repórter da Emissora Nacional, Ferreira da Costa, deixando a Região temporariamente mais calma.
Era essa zona a destinada ao grande Esquadrão, que veio a substituir na fazenda Lifune - Tari uma das companhias pertencentes ao glorioso 96, que ali se fixara, depois de recuperado Nambuangongo, ao então grupo de guerrilha da UPA, que tornara assim a zona mais pacificada.
Recorde-se que, o pessoal comandado pelo Tenente-Coronel Maçanita, atingiu o grande feito, com a velha espingarda Mauser, visto ser a arma que o exército possuía.
Afinal o opositor, além dos "canhângulos" (espingardas improvisadas com canos rudimentares e munições feitas de vários materiais, até com pregos velhos) e catanas, utensílios cuja utilidade, além de outras tarefas do campo locais, era a de ceifar o capim.
Picada  da entrada na fazenda Tari

Aparecendo só aqui e além, alguma espingarda, naturalmente em mãos de superiores, a dirigir a rebelião.
A Região dos Dembos, durante cerca de um ano ficou mais calma, especialmente na parte onde estava sedeada a tropa sob o comando do Batalhão em Muxaluando.
Dali, como já se viu, partiu a sortida final para a retomada da célebre povoação de Nambuangongo
Na larga extensão que servira de Base ao grande feito guerreiro, talvez um dos maiores travados por portugueses em toda a África no século XX, passaram a dominar os militares pertencentes ao Batalhão 350, comandado pelo Tenente-Coronel Costa Gomes. Irmão do que tendo o mesmo apelido, atingiu a Presidência da República e o alto posto militar de Marechal.
Durante cerca de um ano, salvo algumas escaramuças, conheceu-se aquilo a que poderia chamar-se a segunda fase da guerra de Angola.
Por exemplo, em períodos mensais, havia um ataque de três ou quatro tiros, num verdadeiro "bate e foge", a uma das muitas colunas militares auto-transportadas, por aqueles caminhos, roças e muceques destruídos e desabitados, procurando manter a soberania e a paz.
Como não tinha havido troca de armas, visto todo o Batalhão ir já provido, com espingardas novas modernas, que por deficiente fabrico, em breve foram substituídas por G3, cuja maior eficiência era inegável.
Logo no dia sete iniciou-se o serviço destinado ao Esquadrão, que tinha a comandá-lo o Capitão João Ramiro Alves Ribeiro, um homem que já ia dando provas de talento militar, não só pela dignidade do posto, como pelos inegáveis dotes de comando.
No entanto só no dia oito Onofre e os seus camaradas, mais próximos, Esquim Pinto, Teodoro e o motorista Gastão, no Jeep que lhes estava destinado, iniciaram verdadeiramente os serviços de escoltas auto-transportadas, trabalho que lhes fora atribuído, pela sua própria especialização.

Ponte sobre o rio Lifune, por não haver tempo da sua destruição total, afim de ser cortada a passagem das tropas que avançavam para a fomada de Nambuangogo, foram apenas parte das guadas.

Começou com a amenidade de um pequeno itinerário, cerca de quinze quilómetros, o que dista do Tari a Vista Alegre, numa coluna destinada a transportar pão, para acompanhar as refeições de um pelotão, uma fracção do Esquadrão, que destacada tinha a missão de assegurara presença no local, que serviu de partida na épica tomada de Nambuangongo.
A partir desta data, entre as muitas escoltas, outros serviços no aquartelamento, muitas conversas, a escrita de cartas à família e amigos e às Madrinhas de Guerra, Onofre nunca deixara de estar activo.
Evidentemente, viviam-se a partir daquele local, inúmeros episódios, uns menos alegres e outros de puro divertimento.
Logo a dezasseis de Março, depois de um dia trabalhoso, houve ordem de ir um pelotão a Vista Alegre reforçar o ali residente, pois havia-se sentido algo estranho. Depois de muito se observar, chegou-se á conclusão de ser nula presença de rebeldia.
Como o alarme não passara de rebate falso, já madrugada o reforço voltou à base sem novidade.
Entretanto, começaram as batidas, que eram efectuadas por um pelotão de militares, levando sempre por escolta um ou vários Unimogs, transportando tropas. Acompanhava de um Jeep equipado com metralhadora pesada Breda e o respectivo grupo.
Muitas vezes calhava à esquadra do Onofre, tanto mais, que quase todos os dias havia os mais variados serviços exteriores.
Considera-se importante mencionar o Arsénio, também especializado em armas pesadas, na vertente morteiros, na maior parte das vezes também ao serviço de escoltas.
Portanto só andava em corredores de caminhos compostos pelas chamadas picadas.
Porém, tomou a opção de oferecer-se voluntariamente, para se movimentar na qualidade de atirador.
Não havendo subjacente prejuízo, era muito bem aceite a ideia. Acontecendo algumas vezes, nas acções chamadas batidas, haver apreensão e recolha de diverso material, à mistura com Angolares.
Depois de tudo passar pelo Comandante, o dinheiro voltava sempre a quem o entregara.
O recolhido pelo Arsénio, ia logo direito a umas "Cucas", para os amigos, onde nunca podia faltar o Onofre!

Daniel Costa


terça-feira, 23 de março de 2010

AMOR NA GUERRA

REGIÃO DOS DEMBOS

Uma coluna militar composta por Jepps e Unimogs a estrear, adaptados com blindagens de aço, preparados para a missão de guerrilha, enquanto se ia esperando a localização da área a ocupar.
Esta situou-se na Região dos Dembos.
Terminado o tempo de estágio, chegou a ordem de avanço, com viagem e tomada de posição na Fazenda Lifune-Tari, a cerca de duzentos quilómetros a norte de Luanda.
Saídos naquela madrugada de Março, a breve trecho, todo o Batalhão de Cavalaria 350, se tinha embrenhado na viagem. Logo a sua estrutura foi assumindo, pouco a pouco outra postura. O ambiente já se ia tornando florestaL, o novo habitat das tropas que iam combater.
O cenário que se apresentava era o da esperada guerrilha.
Pouco depois da saída, passou a ser facto estar desbravado o capim e toda a flora em cerca de uma dúzia de metros, dos ambos os lados da estrada, de terra batida, ao longo de toda a extensão, não só tendente a que a visibilidade fosse um facto.
Ainda para obviar a um ataque traiçoeiro dos bandidos da mata, como eram definidos os terroristas, caindo em cima da tropa, avistados apenas quando já seria impossível um contra ataque, sem que tivessem caído uns quantos militares apanhados pela surpresa.
Um dos grandes trunfos de todas as guerras.
Integrado o Esquadrão, o Onofre ousava seguir sempre descontraído, como lhe era muito natural, o que não excluía a grande atenção patenteada em todas as acções da sua incumbência.
Uma pausa na viagem

Chegados à primeira instalação de tropas, uma fazenda chamada Balacende, logo aí houve conhecimento de ter havido, dias antes apenas, como sempre, um verdadeiro ataque terrorista cobarde.
Veio a verificar-se ser o último do género.
Consistiu no seguinte:
- Uma horda de terroristas, armados apenas com catanas e canhângulos, armas rudimentares, com que uma facção indígena havia iniciado aquele tipo de ataques, vociferando no assalto à mistura com imprecações como:
- A bala do branco é água... não mata!...
Evidentemente que, da surpresa resultou a queda de vários militares. A partir daí é previsível, o que aconteceu, dava a ideia que os atacantes tinham sido criminosamente drogados, acabando todos por cair à força do poder de fogo das tropas regulares, ali estacionadas, prontas para a defesa militar de toda a zona.
Ali verdadeiramente, os militares do Esquadrão, começaram a sentir os perigos que lhe estavam destinados.
A grande aventura sempre prevista pelo Onofre, já se estava a concretizar.
De emoção em emoção, ainda no dia 5 de Março de 1962, apenas percorridas algumas dezenas de quilómetros, os novíssimos carros da coluna começavam a avariar com frequência.
Indiciava-se a pouca experiência dos condutores. De uma maneira geral, só levavam na bagagem aprendizagem militar de três a quatro meses e transitavam por caminhos de terra batida, designados de estradas, mas impróprios para condução, ainda que os carros utilizados já fossem de fabrico adaptado ao terreno.
A cada interrupção, a lógica obrigava a formar-se guarda ao dispositivo militar em deslocação.
Numa dessas ocasiões, com numa verdadeira temperatura africana, já de noite, esgotados os cantis, de novo chegou a sede. Foi altura da tropa conhecer providencialmente uma árvore frondosa, existente ali naquele clima, dir-se-ia microclima, deitando pingos de um líquido muito fresquinho, que serviu de atenuante à irresistível vontade de refrescar as gargantas.
Embora mais vezes se viesse a sentir a necessidade daquele milagroso néctar, nunca mais seria detectado.
Ainda na mesma noite, depois de passado o dia com recurso à alimentação de reserva, bolachas de água e sal e umas latinhas de variados produtos, deu-se a chegada a um outro ponto operacional militar, designado por Beira Baixa, foi aí que se pernoitou. No caso do Onofre e seus e companheiros mais próximos o Jeep serviu de cama.
Como tudo o que indiciava aprendizagem para a nova missão era motivo de atenta observação. Para trabalhar na fazenda logo de manhã cedo, um grupo de Bailundos formou, afim de se proceder à habitual chamada imposta pelos tempos de guerra.
Pela primeira vez era dado ao Esquadrão ver tantos negros juntos. Depois já perto da "picada" de saída, encontrava-se uma casota, servia de cadeia a terroristas, porventura, apanhados. Ostentava a pomposa inscrição de palácio da justiça. Muito perto uma tábua em jeito de seta, apontada para Lisboa, indicava a distância respectiva em quilómetros.
A casota onde se prendiam adversários capturados.
 Na parte superior a inscrição palácio da independência

Com passagem no cruzamento de Nambuangongo, depois pela fazenda Onzo, outra posição militar, chegou-se cedo a Muxaluando onde ia ficar o comando do Batalhão.
A alimentação continuou baseada na habitual ração de reserva.
Estávamos no dia de Carnaval de 1962.
Naquele dia, ali se fez a dormida, sobre um cartão, com o bonito firmamento a servir de cobertura.
Mas a vida aventurosa não deixaria de continuar.
Chegados ao aquartelamento, ainda fora do recinto de arame farpado, que ladeava o perímetro do mesmo, constituindo uma primeira defesa, enquanto os militares esperavam a ordem de se instalarem, o Picão combinou uma banca de jogo da sueca.
Debaixo de um Unimog, num jogo circunstancialmente demorado o Onofre, de parceria com o organizador, chegaram a um resultado deveras positivo, naquela actividade a que continuava a chamar lúdica, embora movimentasse largos Angolares.
Valeram as amizades já constituídas terem, entretanto, tratado da instalação em ponto agradável nas ruínas do edifício, a que se chamou de caserna, como tinha de ser óbvio, não obstante a sua degradação, em virtude da acção do recente início de guerra.
Depois de demorar três dias a percorrer os cerca de duzentos quilómetros, que distavam de Luanda, no dia sete de Março o Esquadrão instalara-se finalmente na Fazenda Tari-Lifune, onde iria ficar sedeada.
Da ementa do almoço daquele dia voltou a constar ração de reserva.
Já havendo as barras das camas, para servir de colchões, havia folhas de zinco. Para almofadas, os militares usaram feixes de capim.
Não havia ainda qualquer roupa de cama.
A lógica do dito, "desenrasca-te que és de cavalaria" - talvez nunca tenha tido tanto sentido de oportunidade!

Fotos e texto de Daniel Costa



domingo, 21 de março de 2010

AMOR NA GUERRA

ESTÁGIO NO GRAFANIL

Chegados ao porto de Luanda, após o desembarque, depois de cerca de duas horas de espera para desfilar, logo ali na deslumbrante Avenida Marginal, perante as mais altas autoridades territoriais e mediante imenso povo a assistir objectivando, desde logo, a sensação da presença militar nacional na defesa do mais rico e imenso território sob Administração Colonial Portuguesa.
Esperava ver-se apenas naturais de cor negra, porém deparam-se quase só colonos brancos, uns com o fim de se encontrarem com familiares, que tinham viajado, porém a maior parte para trocar Angolares, que não serviam de divisas, só localmente tinham curso legal, por Escudos que chegavam na bagagem dos novos militares.
Só esse dinheiro tinha curso legal na Metrópole, por muito que se dissesse que Angola era Portugal, mesmo com todo o aparato exibido. Ali era afinal outro Portugal.
Depois do aparatoso passeio, de exibição na principal Avenida da cidade, toda a tropa embarcou em camionetas militares, de caixa aberta, rumo ao Grafanil, que já se começava a desenhar como o Centro Militar da Colónia em guerra que, no dia quatro de Março de 1961, tinha estalado relativamente perto, em forma de ensaio.
Desfile do Equadrão 287 na Marginal de Luanda

A permanência ali, pelo menos no princípio, era tida como um estágio de adaptação ao clima africano. Depois à medida do alastramento territorial e do célebre discurso proferido António de Oliveira Salazar imortalizado pela frase: "para Angola em força".
O Grafanil, a sete quilómetros de Luanda, passou apenas a ser ponto de passagem, para milhares de militares, ao longo de cerca de catorze anos.
Convém trazer à memória as incidências de factos, na comunidade que constituía o Esquadrão, porque a grande história é feita de pequenos episódios.
O grande Esquadrão que pertencera a princípio ao Batalhão de Cavalaria, sob o comando do Tenente-Coronel António de Spínola, veio a ser separado por motivos estratégicos.
Depois de se ter recebido a nova farda, que se iniciara a destribuir a todos os militares destinados ao Ultramar, no mesmo dia acabada de receber, voltou a ser devolvida para entregar ao Esquadrão substituto, com a agravante de muitas devoluções serem já de roupas adaptadas à morfologia dos primitivos donos.
As primeiras construções do Grafanil, à beira da estrada Luanda - Dondo, por ordem, foram destinadas ao Esquadrão que viera de Faro, ficando o resto do Batalhão nas seguintes. A outra tropa que já ali se encontrava estava acomodada em tendas de campanha.
Mesmo assim, os novos habitats construídos, como equipamentos, apenas dispunham de camas, colchões e cobertores.
O restante equipamento militar de serviço era ainda muito incipiente. A comida era bem feita, mas servida em fila e para utensílios de campanha. Não havendo ainda qualquer tipo de refeitório, a refeição era degustada pelos militares espalhados a esmo pelo terreno. No mesmo já havia barracões, a servir de cantinas, onde podiam ser adquiridas bebidas refrescantes.

Primeira refeição no Grafanil, a esquerda o autor e o Nascimento

Havia grandes estruturas para servir bebidas, balneários em barracões de madeira para frequentes banhos num novo clima.
Também para as necessidades fisiológicas, havia latrinas feitas em sulcos, com tábuas de través, onde as pessoas se equilibravam, visto que os rudimentos eram um facto. Os excrementos, usualmente, todas as manhãs eram tapados com terra por buldozeres, para evitar a propagação de focos infecciosos.
Tudo aquilo era levado à conta de aventura por Onofre, tanto mais que se estava no tempo áureo das Madrinhas de Guerra e do Serviço Postal Militar (vulgo SPM) criado já em 1961, que funcionava muito bem.
Para não ser conhecido o estabelecimento de cada Unidade, quatro dígitos fornecidos na origem, constituam a morada. Assim à chegada, entre a muita correspondência, lá estava a carta da inconfundível Ana Zé, que imprimia um cunho especial á correspondência com as boas vindas.
Assim se viveu naquele campo, entre alguns serviços e os sempre presentes exercícios de aplicação militar, continuação da prática de movimentação do armamento e tácticas de guerra de guerrilha, tudo o que parecia útil ao serviço do combate no terreno.
Embora se tivesse partido em pleno Inverno da Europa, chegados à África estava-se na época de Verão, assim o tempo disponível, era aproveitado em gozo, na ilha do Mossulo, voltas pela cidade de Luanda, visitas aos muceques, a cervejarias, a cinemas e a outros lugares.
Nessa altura, estava estabelecido um serviço de camionetas militares de caixa aberta, para transportes de homens a horas certas, ida e volta, do Grafanil para a cidade.
Ainda incipientes estes serviços, numa estimativa um pouco aleatória, já haveria em Angola cerca de vinte e cinco mil militares, mesmo assim no portão do campo do Grafanil dava-se o estacionamento de muitos motoristas de ligeiros a oferecer boleia para a cidade.
Muitas visitas também se efectuavam no novel e curioso estabelecimento de tropa, normalmente eram familiares a viver na Colónia e militares conhecidos, da metrópole.
Foi um tempo deveras interessante de observar, para o ideário de juventude, aquele modo de vida de maneira verdadeiramente espectacular. Era tudo gente muito nova à espera de entrar numa guerra que ainda ninguém conhecia, pelo que era presente o convite ao alheamento, se bem que já chegassem as más notícias da frente de combate.
Tudo servia de charge: Havia um repórter chamado Ferreira da Costa, que ao serviço da Emissora Nacional. diarimente emitia para Lisboa, na sua voz meio roufenha, meio arrastada, ia dando notícias individualizadas, naturalmente a quem as solicitava. Eram sempre boas, por regra.
Então surgia, normalmente á noite: "Minha senhorra o seu filho está bem... anda de muletas, ou este outro exemplo: "Minha senhorra o seu filho está bem... está no cemitério de Luanda".
Esta era uma maneira de brincar com a tropa, como por vezes se dizia.
Uma forma, digamos que lúdica, continuou o jogo da sueca, sempre como parceiro um beirão, um amigo peculiarmente interessante, talvez por isso era-o do peito, de nome Arsénio.
Não era um bom executante daquele jogo, que exigia um bom coeficiente de inteligência, porém ficava sempre com bons trunfos. Parecia um predestinado ganhador. Como o Onofre já lhe administrara algumas instruções e depois da primeira ronda de cada risco, logo ficava com uma leitura do mesmo, exercia adequado controlo, acabando a peleja no mínimo empatada, nunca havia perdas.
Daí saiu inesperadamente "promoção", depois de uma dessas disputas, um elemento adversário que, obviamente, mais uma vez perdera, o Picão, cujo acompanhamento dos métodos, o fizera considerar, confraternizou e a propósito afirmou peremptório: "Onofre és bom demais para meu opositor! A partir de agora passarás a ser meu parceiro".
Assim foi, com excelentes resultados! Sendo já previsíveis, o grande amigo Arsénio foi avisado para a não participação contra a dupla, porque mesmo com bons trunfos, passaria à condição de perdedor.
Chegados a segunda feira, cinco de Março, logo de manha cedo, já munidos para enfrentar finalmente, o estado de guerra a sério, todo o Batalhão comandado pelo Tenente-Coronel Costa Gomes, que se dizia estar ali voluntariamente, para amenizar dissidências com Salazar, de que fora Subsecretário de Estado, em relação ao conflito.
Convém destacar que este Oficial Superior viria a ser hospitalizado em Luanda, vindo a falecer de morte natural em Lisboa, durante a comissão.
O apelido de Costa Gomes, igual ao do que foi Presidente da República, tem a ver com parentesco próximo.
Eram irmãos, de facto.

Daniel Costa

sexta-feira, 19 de março de 2010

AMOR NA GUERRA

DE FARO A LUANDA

No princípio da noite de 11 de Janeiro de 1962, o cais de embarque ferroviário de Faro esteve apinhado de gente. Era a primeira vez que um comboio especial de tropas, com a ainda inédita farda camuflada partia dali rumo à guerra do Ultramar.
Tratava-se de um Esquadrão que estivera no quartel de Infantaria daquela cidade, aguardando embarque, tal como uma bateria de Artilharia, vinda do Porto que ali estacionara também.
Era preciso ter em conta que muitos militares eram algarvios.
Além da proximidade de alguns, aconteceu que outros ao passarem por ali cerca de três meses de juventude, com fardas nunca antes vistas, a atracção e desenvoltura do elemento feminino local fez com tivessem ficado bastantes namoricos que, obviamente, se apresentavam com alguns familiares a engrossar a despedida da leva de soldados.
O mesmo comboio servia de transporte directo até à Rocha do Conde Óbidos, em Lisboa, onde o velho paquete "Niassa", uma parte destinada a passageiros, o restante feito para cargueiro, estava fundeado para levar um grande contingente militar rumo a Luanda.
Chegados ao alvorecer do dia doze, via directa àquele porto.
Cumpridas as praxes militares, o paquete deixando a cais, primeiro lentamente, depois conforme ia deixando o porto, ia tomando a navegação normal. Até que, deixou de se avistar terra.
Duas lágrimas teimosas a correrem pelo rosto de Onofre, que depois foi instalar-se nos seus aposentos:
- Um espaço que dava apenas largura para um militar se entender e pouco mais para colocar os seus pertences, resumidos a dois sacos de lona, onde se armazenava toda a roupa de campanha.
O Tejo estava bravo naquele dia de Janeiro, as escadas que davam acesso aos porões transformados em casernas, onde tinha de passar a tropa, em breve se encheram. A maior parte dos estômagos não podia suportar, as condições do mar que provocavam um forte baloiçar do navio.
Depois de ter tomado conta da sua posição, Onofre não pôde deixar de sentir uma certa nostalgia, que se misturava com um certo sabor aventureiro há muito acalentado. Havia de regressar para jamais sentir o pó da terra, jurava mesmo que deixaria de ser um "coitadinho", um trabalhador rural, como muitos sem saberem o que é ter palavra, ali iam sem direito a saber porquê ou para quê.
De relance olhou o passado. Tinha a força suficiente para ter sido já "um dos homens das mãos grandes", como a sua mãe desejara. Naqueles tempos, um trabalhador rural que se destacasse, em épocas de muito trabalho, chegava a receber cem escudos de jorna diária, enquanto normalmente, nos mesmos tempos de aperto, a tabela nunca passava dos trinta escudos.
Na zona donde era oriundo geralmente a diária de sol a sol, não passava de vinte e cinco escudos,
Foi assim, que o Onofre, nos três dias de trabalho remunerado (fora das pequenas courelas familiares), arranjara os trezentos escudos, que juntara a alguns trocados das suas parcas poupanças para a vida militar, que há pouco iniciara.
Já embarcado, contactos de resultados promissores, tornaram a vida a bordo, tornara-se razoável para Onofre. Duma apresentação resultou, a troco de alguma ajuda na cozinha, ganhar o privilégio de fazer as refeições na copa do próprio navio, o que evitava o rancho geral e as próprias marmitas militares, um desconforto para quem viajava no mar alto durante doze dias.
Naqueles tempos de Janeiro de 1962, vividos a bordo, entre distribuição de armas de guerra, alguns exercícios militares, muitos olhares nostálgicos e melancólicos inspirados pelo grande oceano, jogava-se diariamente a sueca.
Um jogo de cartas, tornado doloroso porque consistia numa bandeirada de cinquenta escudos por cada risco perdido. Porém o homem saiu-se bem dessa perigosidade.
Aquela grande aventura passava-se noutros tempos, em que os póprios homens  foram eram submissos a estes destinos
Uma coisa ainda era lembrada da escola, foi o ensejo de por alturas do Equador, poder observar peixes voadores. Cardumes de peixes a voando!
A passagem do Equador foi assinalada festivamente, com a contribuição da orquestra residente, como tal, também acompanhava a expedição marítima, com todo o aparato de festa.
Porém a representação maior foi exibida por vários militares que viajavam a caminho da guerra.
Tudo corria, apesar de o "Niassa" transportar cerca de dois mil e quinhentos homens, quando fora concebido apenas para cerca de seiscentos, mais mercadorias.
Em resultado, podia falar-se de um barco, em que uma parte fora transformada, destinado ao transporte de "condenados", tanto mais que tudo quanto fosse praça tinha além do péssimo alojamento, de se servir da coberta para refeitório, tendo o respectivo estojo militar de campanha como talher.
Por outro lado, atingido o Equador, o calor era demasiado. Para a classe das praças, os tempos para banhos em grandes compartimentos eram limitadíssimos, dado haver tantos homens, para a pouca água possível de transportar armazenada.
A refrigeração era feita por mangas, vindas do alto, a entrar nos porões transformados. Em resultado, apesar dessa criatividade, a frescura que supostamente chegaria, foi sempre nula.
Entre conversas, ver mar, somente mar, durante doze dias, chegou finalmente a tão ansiada véspera de entrada em Luanda.
Toda a gente entrou em euforia, tal era o desejo de pisar terra firme!
Enquanto a coberta da Nave se enchia de homens desejosos de voltar a avistar terra, nos porões transformados em casernas, algumas das estreitas tarimbas, que serviam de cama ou enxerga, estavam outros pela última vez até que começou a soar o alarme de fogo a bordo, pela estreita escadaria que servia o porão, os circunstantes subiam debaixo de inúmeras faúlhas, vendo com certo pânico o que se passava.
Foi posta à prova a coragem da tripulação, que acabou por extinguir o fogo que chegarou a expelir fortíssimas labaredas.
Logo por cima do porão, que calhara ao Onofre, tinham sido edificados barracões de madeira, para armazenar os coletes de salvação que, distribuídos a todos os soldados, tinham sido já recolhidos em fim de viagem.
Na vigília da noite, à espera da chegada a terra, presume-se que alguém fumando, deixara inadvertidamente uma ponta de cigarro rebolar por uma das aberturas que havia na base a servir de respiração aos improvisados barracões, causando o que se chegou a prever catastrófico.
Chegou a haver pavor, traduzido em factos deveras peculiares:
- De entre outros, Onofre destaca o que lhe pareceu mais hilariante, protagonizado por um soldado do Esquadrão, ao munir-se da pistola Walter, que lhe havia sido atribuída.
Com a mesma estava decidido a atirar-se ao mar.
Perguntando, alguém para que serviria a arma?
- Peremptório na resposta:
- " Para matar os tubarões"!
- A história serviu de humor e foi transversal em toda a campanha do Esquadrão!...

Daniel Costa

quarta-feira, 17 de março de 2010

AMOR NA GUERRA

PROLÓGO

A quatro de Fevereiro de 1961, grupos de guerrilheiros protagonizaram ataques à Casa de Reclusão, ao quartel da P.S.P. e à Emissora Oficial de Angola. Actos que passaram a ser considerados o início da guerra de Angola.
Os canais de informação de que dispunha o Estado indiciavam que ia começar uma luta sem quartel, para libertação de todo o Ultramar, administrado pelo governo português.
Foi já nesta conjuntura, que em 1959 teve lugar a minha inspecção militar. Confesso que me agradou o apuramento para "todo o serviço", à época a passagem pela vida militar por quem vivia como trabalhador rural, era considerada assim como uma "Universidade", visto que traria um certo desenvolvimento para o intelecto.
Aceitando trabalhar na ceifa, de sol a sol, durante três dias de quarta a sexta, com a diária de cem escudos a competir com as grandes feras da jorna, quando em tempos de aperto, como era o caso, o máximo que se podia alcançar cifrava-se em trinta, tinha como ideia subjacente juntar o dinheiro para futuros gastos.
Naquele tempo as repartições atendiam ao sábado, havendo já mancebos a emigrar clandestinamente, para fugirem à miséria e à tropa.
Nessa sexta uma patrulha, montada em bicicleta foi verificar o que se passava comigo.
Dirigiram-se logo à autoridade máxima da terra, o cabo chefe, que era por acaso vizinho e familiar, na sua loja serviu uma bebida a cada, perguntado o que poderia haver de menos bom.
Soube logo o porquê, soltando uma risada: mas esse rapaz anda no trabalho, naturalmente para arranjar algum, para encarar a nova situação, fiquem descansados que amanhã de certeza irá levantar as guias!
Mais nenhuma acção foi levada a efeito. Mesmo assim o amigo que representava o governo na terra, apareceu pela hora da ceia a contar o sucedido. Ficou com a certeza que tudo se passaria como garantira aos elementos da patrulha.
Por mim, achei que iria ter a oportunidade de deixar a agressividade do meio, como sempre desejei ir muito mais além, pelo menos se o destino fosse a Lisboa dos meus sonhos.
Não acontecia assim, a ideia de mudar a existência para uma nova dignidade nunca me saiu do pensamento.
Em Junho de 1961 assentei praça na cidade de Elvas, até aí ninguém nascido naquela aldeia do Oeste, tinha iniciado a tropa numa terra tão distante, normalmente ia-se para Caldas da Rainha ou Lisboa.
Cheguei à estação de Santa Eulália, de comboio na madrugada de dezoito. Camionetas de caixa aberta enviadas do quartel do destino esperavam os muitos jovens que aportavam, uma vez que chegavam ali cerca de mil e seiscentos homens e o estabelecimento militar, aquele novo mundo dista cerca de cinco quilómetros.
Desembarcado de madrugada, integrei-me imediatamente num grupo. Como era muito cedo, demos um giro ao típico mercado da cidade, onde logo tratámos de tomar o pequeno-almoço, constituído por sardinhas assadas na brasa. Pareceram as melhores até então degustei.
Ainda escuro, fomos deambulando, por aquele verdadeiro miradouro, donde se avistava Badajoz. Tudo o que observava era um deslumbramento, pela primeira vez estava a conhecer uma cidade.
Até que, pelas nove horas, sempre em grupo, lá rumei ao quartel de Infantaria, para as formalidades de entrar na vida castrense.
Uma rápida sucessão de acontecimentos faziam suspender a respiração, pois de um momento para o outro, todo o modo de estar se tinha invertido.
Começou com a distribuição do fardamento, o cabelo que pensava estar suficientemente curto, depois de inspeccionado foi alvo de novo corte para ficar quase rapado, a seguir o banho, que tinha de passar por todos, para de imediato começar a preparação militar.
Veio o meio-dia e o almoço. Como havia duas companhias de recrutas, cada de oitocentos homens, uma enchia o grande refeitório, que abandonava imediatamente após a refeição, dando lugar à outra, em segunda leva de comensais. Era altura de alguns dizerem que mais valia andarem a cavar chão seco, do que suportar aquele inferno, isto originou o meu comentário:
- Pois é... se ao menos tivessem experimentado o trabalho do campo, não pensavam do mesmo modo!...
De facto ao fim de três dias tinham-se-lhes acabado os fundos e era vê-los esganados a comerem, talvez melhor de que ninguém, no refeitório, abominado dias antes.
Durante as sete semanas de recruta em Elvas, algumas vezes ouvi superiores comentar, que todo aquele aglomerado de homens já estava destinado ao Ultramar. Não queria crer no que ouvia e questionava para os meus botões:
- Então? Quem fica cá a tomar conta de posições militares?
No último dia, febril com anginas, evitei a consulta médica, pensei ir a doentes já noutra cidade, visto que não queria perder o novo lance constituído pela mudança.
Resultado - Nesse mesmo dia, talvez por se registar um calor tórrido, desmaiei, só vindo a acordar no hospital militar de Elvas.
Ao fim de rápida convalescença, depois de ter ficado ainda uma noite no quartel original, apanhei uma carreira regular para a cidade de Estremoz.
Em Estremoz num pelotão comandado pelo Alferes Fidalgo, este foi dizendo que depressa seríamos mobilizados e viriam, entretanto novos comandantes, para formar um Batalhão a partir já estruturado.
Ele não iria pelo que não imprimiria rigor à instrução, se fosse queria um núcleo bem preparado fisicamente. Poucos dias depois chegaram, de facto os oficiais superiores que constituíram o Batalhão 345.
Era comandado pelo Tenente-Coronel António de Spínola.
O Esquadrão 297, a que pertenci, nos primeiros dias de Outubro de 1961, recebeu o novo fardamento camuflado, cuja devolução acabou por ser feita na mesma tarde.
Por ter o comandante mais novo, aquela fracção de unidade, acabou por deixar o Batalhão, tendo ido com a sua tropa, para o quartel de Faro aguardar embarque.
Substituía uma outra, cujo comandante reivindicou a troca, uma vez que estava há muito à espera de embarque.
O comandante do novo Batalhão, o 350, foi o Tenente-Coronel Costa Gomes, irmão do Marechal, que foi Presidente da República, do mesmo apelido
Curiosamente, neste já fora integrado o citado Alferes Fidalgo, que no Grafanil, a fim de se livrar da tropa e de intervir no mato, pressupostamente por acidente, furou um pé descarregando um tiro com a arma que lhe estava distribuída.

Daniel Costa


terça-feira, 16 de março de 2010